Yvirá Cátedra UNESCO de Educação e Diversidade Cultural

‘Soneca não faz com que crianças aprendam mais, mas permite que esqueçam menos’

Elisa Martins

Especial para a Yvirá

“A soneca, em especial, não faz com que as crianças aprendam mais. Ela permite que as crianças esqueçam menos. Trabalha na consolidação das memórias.”

“O sistema educacional está montado menos para que as pessoas aprendam de maneira duradoura e mais para produzir um ranking de conhecimento que é instantâneo, só vale no dia da prova.”

“Falta de sono é um problema extremamente difuso. Em várias atividades profissionais, inclusive, dormir pouco é uma espécie de medalha de honra. Parece que as pessoas precisam se gabar de que estão no limite. ”

“A escola precisa ter salas de sono, redes, quartos escuros, seguros, para que as pessoas possam dormir. Não é muito diferente de ter um banheiro: se há uma necessidade fisiológica, é preciso dar vazão àquilo.”

“Existe um achatamento cultural com esse monopólio da estimulação sensorial. E quando são quatro, seis, oito horas de telas, entra-se no terreno da patologia. Daí essa epidemia de transtorno mental entre as crianças e os adolescentes.” 

“A perda da capacidade de concentração total em uma única coisa é preocupante. Quando alguém perde isso, toda vez que começa a realizar uma tarefa precisa parar no meio e ir para uma mídia social ou jogar videogame. É patológico.”

“Nosso horizonte de vitória é uma escola que seja espaço de descoberta e aventura intelectual, emocional, artística. Essa transformação remete a um futuro ancestral, e as escolas precisam de ajuda para fazer isso.”

Elisa Martins

Especial para a Yvirá

Neurocientista Sidarta Ribeiro explica como a soneca no ambiente escolar pode ajudar a que o aprendizado dure mais tempo e comenta os desafios de aplicar pesquisas sobre o tema em grande escala, numa sociedade com crianças e jovens cada vez mais conectados às telas

FOTO : LUIZA MUGNOL UGARTE_DIVULGAÇÃO

A infância como conhecemos há milhares de anos está em xeque, e a lista de razões para isso é extensa. Cada vez mais presentes na vida de crianças e adolescentes, a internet, as redes sociais e o uso excessivo de telas mudam comportamentos e impactam na saúde mental das gerações atuais. Mas também há fatores básicos e mais simples, como o sono, que merecem atenção pelo impacto positivo que geram no aprendizado e no desenvolvimento dos pequenos e dos não tão pequenos. “A soneca não faz com que as crianças aprendam mais. Ela permite que as crianças esqueçam menos. Trabalha na consolidação das memórias”, diz o neurocientista Sidarta Ribeiro, um dos fundadores do Instituto de Cérebro e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Em entrevista à YVIRÁ, o pesquisador comenta a importância do sono e dos sonhos na aprendizagem e na contribuição para uma educação que reduza desigualdades, e defende o poder da imaginação em meio a um furacão de estímulos visuais das telas e celulares. Confira na entrevista a seguir. 

“A soneca, em especial, não faz com que as crianças aprendam mais. Ela permite que as crianças esqueçam menos. Trabalha na consolidação das memórias.”

Como a ciência do cérebro pode ser uma aliada da educação e fornecer informações valiosas a serem aplicadas no ensino e aprendizagem? Como essas duas áreas se integram? 

SIDARTA RIBEIRO: A neurociência e a educação têm uma ponte, e ela passa pela psicologia cognitiva. É uma ponte de mão dupla. Por um lado, a educação pode aprender e se inspirar muito com descobertas da psicologia cognitiva, que tem mecanismos neurobiológicos que podem ajudar a desenhar novos ambientes e novas interações de aprendizado que sejam mais eficazes e saudáveis. Por outro lado, neurocientistas, psicólogas e psicólogos cognitivos interessados em educação têm muitíssimo a aprender com professoras e professores, coordenadores e coordenadoras que de fato realizam essas atividades, porque não há como universalizar o aprendizado que é local. Através de observações, réplicas, escuta e diálogo é possível descobrir quais são as perguntas mais relevantes que precisam ser respondidas por todas essas pessoas. O Brasil tem avançado muito nessa direção, e a Rede CpE (Rede Nacional de Ciência para Educação) tem um papel importante, que é o de promover esse diálogo de mão dupla. 

Quais são os achados positivos mais recentes neste sentido? Destaca alguma pesquisa em especial? 

SR: O assunto que mais tem me interessado na aplicação do conhecimento neurocientífico à educação é a utilização da soneca no ambiente escolar para melhorar o aprendizado. Já se comprovou que a soneca no ambiente escolar pode fazer com que o aprendizado dure mais tempo. Mas ainda temos muito a descobrir sobre como aplicar isso em grande escala. Temos uma aluna do mestrado no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Flora Assaf, que aplica o protocolo que desenvolvemos em pequena escala para conseguir dobrar a velocidade de leitura das crianças de 5 e 6 anos em fase de alfabetização com base em treinamento específico e soneca. O objetivo é levar isso para uma escala maior,  para muitas escolas públicas. Esse trabalho partiu de pressupostos neurobiológicos sobre a necessidade de um tipo de treinamento que é multissensorial, e que depois aplica a soneca para consolidar o aprendizado. Nossas pesquisas dos últimos 20 anos já mostraram que, se não se coloca uma soneca depois do aprendizado, o aprendizado dura pouquíssimo. As crianças aprendem na segunda-feira, e na sexta não sabem mais. A soneca, em especial, não faz com que as crianças aprendam mais. Ela permite que as crianças esqueçam menos. Trabalha na consolidação das memórias. 

“O sistema educacional está montado menos para que as pessoas aprendam de maneira duradoura e mais para produzir um ranking de conhecimento que é instantâneo, só vale no dia da prova.”

Pensando em modelos de educação, qual é a capacidade de retenção de aprendizagem em um modelo em que as pessoas aprendem determinado conteúdo e depois fazem uma prova sobre esse material específico? Do ponto de vista científico, existe um modelo educacional que seria o mais indicado para que fixem o conteúdo e não se esqueçam dele depois da prova? 

SR: Já está bem demonstrado que a melhor maneira de você lembrar por muito tempo é lembrar várias vezes, sendo testada de maneira não muito estressante sobre esse conteúdo. Então, testes múltiplos que não sejam excessivamente estressantes, mas tampouco completamente relaxados, estão no meio do caminho. São os que vão produzir mais aprendizado. Desde que a pessoa saiba depois se acertou ou errou a questão, ela aprende, mesmo errando. Ela faz a prova, erra, mas recebe um retorno, e isso leva ao aprendizado. É exatamente isso que nosso sistema educacional não faz. Ele geralmente testa os conhecimentos uma única vez. Então, embora as pessoas passem bastante estresse para fazer tanta prova ao longo de tantos anos de formação escolar, muito pouco é retido ao final. Se você fizer uma prova de Enem entre professores universitários, acho que a maior parte não passa, inclusive eu. O sistema educacional está montado menos para que as pessoas aprendam de maneira duradoura e mais para produzir um ranking de conhecimento que é instantâneo, só vale no dia da prova. Mas reproduz os rankings socioeconômicos, valoriza as pessoas que moram mais perto da escola, que têm melhor alimentação, mais exercício físico, livros em casa, que ouviram mais palavras quando eram crianças. Pessoas de classes sociais mais altas terão melhor desempenho, e isso permite que elas ascendam socialmente. A educação vira uma ferramenta de ranqueamento social e não de redução das desigualdades.

Ironicamente, as pessoas dormem cada vez menos horas. Que efeitos negativos essa prática pode gerar? 

SR: De problemas de curto prazo, como dificuldade de se lembrar de alguma coisa, à dificuldade de aprender coisas novas, dificuldades de regulação emocional, em que a pessoa fica irritadiça e se sente contaminada pelo ambiente social. No médio prazo, isso gera pessoas mais propensas à depressão, diabetes, a doenças cardiovasculares e, no longo prazo, à doença de Alzheimer. Falta de sono é um problema extremamente difuso. Em várias atividades profissionais, inclusive, dormir pouco é uma espécie de medalha de honra. Parece que as pessoas precisam se gabar de que estão no limite. E esse limite é cognitivo, emocional, fisiológico, metabólico, hormonal. Não é nada bom. Existem estudos muito interessantes que mostram que, quando uma pessoa é privada de uma noite de sono, ela se sente mais distante das outras pessoas. É algo que, literalmente, desagrega a sociedade. Além disso, a pessoa privada de sono fica menos empática à dor alheia. Isso provavelmente tem muito a ver com o fato de que a rede neural que utilizamos para sentir empatia e nos colocarmos no lugar das outras pessoas é a rede de modo padrão, uma rede específica no cérebro que também é ativada quando sonhamos. De alguma maneira, sentir a dor alheia é sonhar que você é outra pessoa. E a privação de sono crônica dessa sociedade que vive com notificação de celular ligada a noite toda contribui muito para um mau desempenho escolar, problemas no ambiente de trabalho, depressão, ansiedade. É o mal do século. 

“Falta de sono é um problema extremamente difuso. Em várias atividades profissionais, inclusive, dormir pouco é uma espécie de medalha de honra. Parece que as pessoas precisam se gabar de que estão no limite. ”

O que é a bioquímica dos sonhos e como ela pode gerar benefícios na área da educação? 

SR: Uma forma bem concreta é oferecer para a criança o que falta a ela fisiologicamente para ter uma boa experiência na escola. Isso já foi entendido para a alimentação, há muito tempo. Sabemos que quando uma criança chega à escola, ela precisa de um bom café da manhã. Da mesma maneira, se ela não conseguir dormir em casa, seja porque mora com muita gente, porque tem conflito em casa, no bairro, tela ligada até três horas da manhã, ela vai chegar à escola com déficit de sono. E a melhor coisa que a escola deveria fazer é prover um ambiente para ela dormir. Se você pedir a essa criança que já chegou grogue, com o cérebro cheio de metabólitos tóxicos porque não dormiu direito, que fique acordada aprendendo, não só ela não vai aprender como vai tomar horror daquele ambiente. A escola precisa ter salas de sono, redes, quartos escuros, seguros, para que as pessoas possam dormir. Não é muito diferente de ter um banheiro: se há uma necessidade fisiológica, é preciso dar vazão àquilo. A escola tem que ter essa flexibilidade, não pode ser uma ordem unida, com todo mundo fazendo a mesma coisa o tempo todo, porque as pessoas são muito diferentes. O sono pode ser uma soneca durante o dia, num ambiente adequado, escuro, com temperatura adequada. Um ciclo completo de 90 minutos já faz milagres. E tem ainda a questão da imaginação, que é o devaneio, o sonho acordado. Ele também envolve a chamada “rede neural de modo padrão”, que tem a ver com formação de objetivos, desejos, aspirações, algo muito importante para as pessoas entenderem por que estão em formação escolar. Isso também precisa ser trabalhado, porque nesse mundo de excesso de telas, o estímulo audiovisual está sempre completo, frenético, extremamente vivo e brilhante, deixando quase nenhum espaço para imaginação.

Qual é o poder da imaginação e seu impacto no processo de aprendizagem? 

SR: Vivemos uma crise da imaginação. E isso talvez até explique por que as pessoas se sentem tão sem saída hoje. Será que realmente não temos saída ou só não conseguimos imaginá-la? Uma pesquisa feita por Guilherme Brockington, da Universidade Federal do ABC, em colaboração com vários centros, como o Instituto D´Or, mostra que a contação de histórias aumenta as emoções positivas, abaixa o cortisol e reduz a dor em crianças hospitalizadas. Estamos falando do papel da imaginação, da fabulação, da ativação dessa rede de modo padrão para produzir algo que vai ao mundo real na forma de palavras, desenhos ou escrita. De algo que nos liga com a prática de lembrar, de realmente colocar para fora o que se sabe, que é assim que aprendemos. E isso pode ser positivo para a coletividade. A contação de histórias, “causos”, parábolas, cantigas, é muito presente entre povos originários, nas culturas tradicionais, nas tradições da capoeira. É terapêutico cantar e relembrar juntos. Mas tudo isso é muito ausente nesse formato educacional robótico, baseado só em estímulo, só de fora para dentro, e não de fora para dentro e de dentro para fora, fechando um ciclo de causalidade circular entre o ambiente e as pessoas. 

“A escola precisa ter salas de sono, redes, quartos escuros, seguros, para que as pessoas possam dormir. Não é muito diferente de ter um banheiro: se há uma necessidade fisiológica, é preciso dar vazão àquilo.”

Existe um equilíbrio ideal para o uso de telas de forma que elas sejam auxiliares, e não prejudiciais no processo de aprendizagem?

SR: Entregar as crianças às telas por todo o tempo que estão em casa vai contra o que foi feito na escola. Um pouco de tela de alta qualidade, de acordo com a idade, ok, sigamos as  diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS). Agora, tela à vontade todo dia, todo o tempo que não estão na aula, e inclusive na escola, é uma grande catástrofe cultural. Do jeito que a coisa caminha, as próximas gerações não vão ler nada. Não vão se interessar por quase nada do que aconteceu no passado. Existem estudos que mostram que quanto mais a criança assiste televisão, mais empobrecidos são os desenhos dela. Existe um achatamento cultural com esse monopólio da estimulação sensorial. E quando são quatro, seis, oito horas de telas, entra-se no terreno da patologia. Daí essa epidemia de transtorno mental entre as crianças e os adolescentes. A infância como ela foi há milhares de anos está em xeque. 

“Existe um achatamento cultural com esse monopólio da estimulação sensorial. E quando são quatro, seis, oito horas de telas, entra-se no terreno da patologia. Daí essa epidemia de transtorno mental entre as crianças e os adolescentes.” 

Como o uso da internet e das redes sociais em uma infância hiperconectada afeta o funcionamento do cérebro, do sono e até dos sonhos de crianças e adolescentes? 

SR: Quando há uma estimulação audiovisual que captura a atenção de quem está assistindo, o sistema de produção de imagens internas fica suprimido em prol da exposição às imagens externas. A única tarefa nesse caso é prestar atenção nelas. E isso vai sequestrando a atenção das pessoas, e o desejo, formado por aquele conteúdo. Quantos conteúdos infantis basicamente reforçam o consumo de ultraprocessados coloridos, cheios de aditivos, corantes e substâncias cancerígenas variadas? Isso é oferecido desde muito cedo em muitos países diferentes, e de maneira impositiva. Nosso cérebro tem regiões especializadas em detectar novidades. Toda vez que você muda a tela, de frame a frame, você dá um novo sacode noradrenérgico no seu cérebro. E é por isso que as pessoas não conseguem parar, porque entram nesse tipo de relação com a tela que produz o estímulo. E esse estímulo não se repete, é sempre interessante o suficiente para que a pessoa fique ali. E dura muito pouco, o que cria uma atenção fragmentada. A pessoa perde a capacidade de concentração. 

“A perda da capacidade de concentração total em uma única coisa é preocupante. Quando alguém perde isso, toda vez que começa a realizar uma tarefa precisa parar no meio e ir para uma mídia social ou jogar videogame. É patológico.”

Tornou-se comum na atualidade as pessoas assumirem a ideia de que ser “multitarefas” é imprescindível. Do ponto de vista do cérebro, é possível ter uma atenção focada em várias e diferentes tarefas ao mesmo tempo? Ou é uma ilusão criada pela pressão atual de termos que ser cada vez mais produtivos? 

SR: É possível prestar atenção em várias coisas ao mesmo tempo. Mas ao custo de menos atenção para cada coisa. Fico muito incomodado quando vejo crianças vendo três ou quatro telas ao mesmo tempo. Não acho ruim aprendermos a dividir atenção, isso inclusive tem a ver com os papéis sociais. As mulheres em geral têm capacidade de atenção múltipla maior do que a dos homens, justamente porque têm muito mais responsabilidades de trabalhos domésticos. Aprender a dividir a atenção em cada tarefa é algo que tanto homens quanto mulheres precisam fazer para viver. Mas a perda da capacidade de concentração total em uma única coisa é bem preocupante. Quando alguém perde isso, toda vez que começa a realizar uma tarefa precisa parar no meio e ir para uma mídia social ou jogar videogame. É patológico. Existem metas propostas por diferentes organismos nacionais e internacionais de por exemplo evitar completamente as telas para crianças muito pequenas, e ceder pouco tempo para crianças um pouco mais velhas, de preferência tela compartilhada, grande, que todo mundo assiste junto, e a criança não fica presa no próprio umbigo. O adolescente já tem acesso a mais horas (de telas), mas ainda assim é importante desenvolver com ele a noção de quantidade e de qualidade. Para que tenha noção de que excesso de quantidade é ruim, e que ver qualquer lixo é ruim também. 

“Nosso horizonte de vitória é uma escola que seja espaço de descoberta e aventura intelectual, emocional, artística. Essa transformação remete a um futuro ancestral, e as escolas precisam de ajuda para fazer isso.”

Olhando para o futuro, para onde aponta a ciência do cérebro em sua combinação com a educação para melhoria do ensino e da aprendizagem?

SR: Há dois movimentos quase opostos acontecendo. Um deles busca uma automatização e padronização do aprendizado. Por exemplo, o investimento em técnicas que medem o nível de atenção dos alunos, de forma individual, para que ele não caia, como se os estudantes fossem cavalos de corrida. Outro vai numa dimensão mais orgânica e comunitária, de abraçar o bem-estar físico e mental como base para o aprendizado, utilizando ferramentas disponíveis para que cada aluno faça seu próprio percurso. Estamos bem longe disso ainda no Brasil. Nossa agenda deve ser um modelo de educação integral que comporta a soneca, o bem-estar, múltiplas provas para a prática de lembrar, mais espaço para brincadeiras, para contação de história. Nosso horizonte de vitória é uma escola que seja espaço de descoberta e aventura intelectual, emocional, artística. Essa transformação remete a um futuro ancestral, e as escolas precisam de ajuda para fazer isso. Elas são a instituição mais importante da sociedade e são o único local que realmente permite fazer a reengenharia das diferenças sociais. 

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