Yvirá Cátedra UNESCO de Educação e Diversidade Cultural UNESCO
SETEMBRO/OUTUBRO 2025 | nº3

‘A ciência é uma aliada fundamental para transformar a educação’

Elisa Martins
Jornalista, especial para a Yvirá

A exclusão de meninas e mulheres das áreas STEM é um desafio global que reflete desigualdades históricas de gênero, estereótipos culturais e barreiras educacionais.
A valorização da ciência na educação é um caminho necessário para garantir qualidade, equidade e inovação no ensino brasileiro.
A escola precisa ultrapassar seus muros e se tornar um espaço vivo de transformação social.
É essencial que os currículos escolares incluam a Alfabetização Midiática e Informacional (AMI). Trata-se de uma competência que ensina estudantes a avaliar criticamente fontes de informação, reconhecer desinformação e navegar com segurança no ambiente digital.
A educação na primeira infância é uma das estratégias mais eficazes para promover equidade social e romper ciclos intergeracionais de pobreza.  
O futuro da educação brasileira exige um compromisso profundo com a transformação estrutural do sistema educacional, e isso passa por reimaginar o papel da educação na sociedade.
A escola do futuro é aquela que forma cidadãos conscientes, capazes de aprender ao longo da vida, de respeitar o outro, de cuidar do planeta e de contribuir para sociedades mais justas.

Elisa Martins
Jornalista, especial para a Yvirá

 SETEMBRO/OUTUBRO 2025 | n°.3 | Rebeca Otero, coordenadora do Setor de Educação da UNESCO no Brasil, alerta para a importância crucial de se reduzir a evasão escolar e investir em formação docente e no uso da tecnologia para fins pedagógicos, em busca de cidadãos comprometidos com suas comunidades e com o planeta

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

“Ciência e exatas não são para meninas” é um pensamento ultrapassado em um mundo no qual cada vez mais mulheres despontam em carreiras de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM, na sigla em inglês). Mas ainda há um longo caminho a percorrer na redução das disparidades de gênero na educação. Como parte desse esforço nasceu o projeto EducaStem2030, liderado pela UNESCO no Brasil para engajar alunas do ensino médio nessas áreas. “O resultado tem sido muito bom, e vamos expandi-lo para outros estados, em uma união da ciência com a questão de gênero, que é uma prioridade global da UNESCO”, diz Rebeca Otero, coordenadora do Setor de Educação da Organização no Brasil (a UNESCO é a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).


Em conversa com YVIRÁ, Rebeca destaca como a ciência pode ajudar a melhorar o ensino e a aprendizagem no Brasil, bem como tratar de obstáculos ainda latentes, como as altas taxas de evasão escolar e de analfabetismo funcional no país. O investimento na formação docente e na apropriação das tecnologias com fins pedagógicos pelas escolas é outro ponto crucial, diz Rebeca, na busca por uma educação em sentido pleno. Confira na entrevista a seguir.

A exclusão de meninas e mulheres das áreas STEM é um desafio global que reflete desigualdades históricas de gênero, estereótipos culturais e barreiras educacionais.

Como a iniciativa EducaStem2030 da UNESCO contribui para combater a exclusão feminina nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM)? 

Rebeca Otero:  A exclusão de meninas e mulheres das áreas STEM é um desafio global que reflete desigualdades históricas de gênero, estereótipos culturais e barreiras educacionais. A UNESCO tem atuado de forma consistente para enfrentar esse cenário, e a iniciativa EducaStem2030, lançada recentemente no Brasil, é um exemplo concreto desse compromisso. Alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, o projeto EducaStem2030 busca promover a equidade de gênero nas ciências por meio de três eixos estratégicos. O primeiro é a formação de professores. A capacitação docente é essencial para desconstruir estigmas e criar ambientes escolares que incentivem meninas a se engajarem nas áreas STEM. Professores são orientados a reconhecer e combater preconceitos inconscientes, além de adotar práticas pedagógicas inclusivas e inspiradoras. O segundo eixo é a formação e o empoderamento de estudantes. O projeto promove atividades com jovens, especialmente meninas do ensino médio, por meio de encontros com cientistas e profissionais das áreas STEM. Exemplos como o da pesquisadora Jaqueline Goes, que integrou a equipe que realizou o sequenciamento genético do novo coronavírus
dos primeiros casos da covid-19 na América Latina, mostram às meninas que a ciência também é um espaço para elas. Essas ações já foram realizadas em estados como Bahia e Pernambuco, com resultados muito positivos em termos de identificação e motivação. Por fim, o projeto incentiva a mobilização da sociedade. Em comunidades vulneráveis, o projeto utiliza recursos como jogos educativos, materiais de comunicação e ações culturais, como o Cine Solar, uma van equipada com energia solar que percorre periferias levando oficinas e vídeos educativos. Essa abordagem amplia o alcance da iniciativa e sensibiliza famílias e comunidades sobre a importância da participação feminina nas ciências. O EducaStem2030 é mais do que um projeto educacional. É uma ação transformadora que une ciência, educação e igualdade de gênero. Ao inspirar meninas, formar professores e envolver a sociedade, a UNESCO reafirma seu compromisso com uma educação que seja inclusiva, equitativa e capaz de formar futuras lideranças científicas femininas.

Como a ciência pode ajudar a melhorar a aprendizagem no Brasil? 

RO: A ciência é uma aliada fundamental para transformar a educação, especialmente em contextos desafiadores como o brasileiro. Para atuar com qualidade na educação, é essencial que os profissionais tenham formação sólida, estejam atualizados e baseiem suas práticas em evidências científicas. A ciência da aprendizagem oferece subsídios concretos para compreender como os estudantes aprendem, quais metodologias são mais eficazes e como adaptar o ensino às novas realidades cognitivas e tecnológicas. A UNESCO tem promovido iniciativas que evidenciam lacunas na formação docente, como cursos e projetos que revelam dificuldades de professores em se conectar com os alunos, especialmente no uso de tecnologias digitais. Isso demonstra a urgência de investir em formação continuada que seja baseada em evidências, e não apenas em abordagens burocráticas ou administrativas. A criação da Cátedra UNESCO de Ciência para Educação, que produz Yvirá, representa um avanço estratégico nesse campo. Essa iniciativa busca justamente ampliar o acesso ao conhecimento científico sobre ensino e aprendizagem, valorizando a educação como um processo dinâmico, contínuo e centrado no desenvolvimento humano. Portanto, é essencial que as secretarias municipais e estaduais de Educação incentivem práticas pedagógicas fundamentadas na ciência, promovam formações que dialoguem com as evidências sobre aprendizagem e reconheçam o professor como um profissional que ensina com base em conhecimento, pesquisa e reflexão crítica. A valorização da ciência na educação é um caminho necessário para garantir qualidade, equidade e inovação no ensino brasileiro.

A valorização da ciência na educação é um caminho necessário para garantir qualidade, equidade e inovação no ensino brasileiro.

Como a qualidade da educação impacta nas taxas de evasão escolar, especialmente no segundo ciclo do ensino fundamental, e que medidas deveriam ser implementadas para reverter esse quadro? 

RO: A evasão escolar no segundo ciclo do ensino fundamental é um reflexo direto da baixa qualidade educacional. Quando os estudantes não conseguem compreender os conteúdos básicos, como interpretar um enunciado ou resolver problemas matemáticos, eles acumulam defasagens que dificultam a permanência na escola. Essa desconexão entre o que é ensinado e o que é aprendido gera frustração, desmotivação e, muitas vezes, abandono. Além disso, fatores como a distorção idade-série, a necessidade de trabalhar para complementar a renda familiar e a ausência de escolas próximas, especialmente em áreas rurais e indígenas, agravam o problema. A evasão escolar é multifatorial e exige respostas integradas e contextualizadas. A UNESCO defende que a educação deve ser inclusiva, equitativa e de qualidade, e tem promovido projetos que abordam justamente essas questões. Um exemplo é o uso de metodologias que conectam o conteúdo escolar à realidade dos estudantes, como projetos em que os jovens investigam problemas do entorno, como o descarte inadequado de lixo, e, ao mesmo tempo, aprendem disciplinas como ciências, química e língua portuguesa. Essa abordagem fortalece o vínculo com a escola, estimula o protagonismo juvenil e contribui para a permanência dos alunos. A escola precisa ultrapassar seus muros e se tornar um espaço vivo de transformação social. Isso exige esforço, mas é essencial para garantir o direito à educação e combater a evasão escolar de forma efetiva e sustentável.

A escola precisa ultrapassar seus muros e se tornar um espaço vivo de transformação social.

De que forma as tecnologias de comunicação e informação, como celulares, tablets e internet, podem ser usadas para benefício dos estudantes nas escolas? 

RO: A UNESCO reconhece que as tecnologias digitais são parte integrante da vida dos estudantes e que seu uso consciente e pedagógico pode enriquecer significativamente os processos de ensino e aprendizagem. Embora estudos apontem que o uso inadequado dessas tecnologias, especialmente para fins não educacionais, possa reduzir a concentração e prejudicar o desempenho escolar, a solução está na integração responsável e estratégica desses recursos ao ambiente escolar. Quando utilizadas com intencionalidade pedagógica, as tecnologias de informação e comunicação (as chamadas TICs) ampliam o acesso ao conhecimento, promovem a inclusão e estimulam o protagonismo dos estudantes. Um exemplo claro é o acesso a bibliotecas digitais por alunos de áreas rurais, onde o acervo físico é limitado. Fóruns de discussão online, plataformas de aprendizagem e vídeos educativos também podem aprofundar o entendimento de conteúdos e promover a colaboração entre pares. No entanto, para que esse potencial se concretize, é essencial que os  currículos escolares incluam a Alfabetização Midiática e Informacional (AMI). Trata-se de uma competência que ensina estudantes a avaliar criticamente fontes de informação, reconhecer desinformação e navegar com segurança no ambiente digital. A UNESCO tem promovido a AMI em diversos países, inclusive na formação de professores. Também é crucial que os docentes sejam capacitados para integrar as tecnologias de forma significativa, desde sua formação inicial. A velocidade com que a tecnologia evolui exige que os sistemas educacionais estejam preparados para acompanhar essas mudanças, com políticas públicas que apoiem essa transição. Também é importante a utilização de Recursos Educacionais Abertos (REA), como bibliotecas virtuais e plataformas como o YouTube EDU, que oferecem conteúdos alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e abordam temas como direitos humanos, equidade de gênero e sustentabilidade. A tecnologia, quando bem orientada, pode ser uma ponte entre o conhecimento e a realidade dos estudantes. O papel da escola é mediar esse uso, garantindo que os dispositivos digitais não sejam apenas ferramentas de distração, mas instrumentos de aprendizagem, inclusão e cidadania.

É essencial que os currículos escolares incluam a Alfabetização Midiática e Informacional (AMI). Trata-se de uma competência que ensina estudantes a avaliar criticamente fontes de informação, reconhecer desinformação e navegar com segurança no ambiente digital.

Como iniciativas como a Aliança Global de Ciência da Aprendizagem para Educação, criada pela Sede da UNESCO em Paris e da qual faz parte a Rede CpE, responsável por Yvirá, podem ser relevantes nesses esforços? 

RO: A criação da Aliança Global de Ciência da Aprendizagem para Educação pela UNESCO representa um marco importante na articulação internacional de esforços voltados à melhoria da qualidade educacional com base em evidências científicas. Essa iniciativa reflete o papel da UNESCO como agência especializada das Nações Unidas, que atua na interseção entre educação, ciência e cultura, promovendo redes globais de cooperação e inovação. A Aliança reúne pesquisadores, educadores, formuladores de políticas e instituições comprometidas com a aplicação da ciência da aprendizagem — incluindo neurociência, psicologia cognitiva, pedagogia e tecnologia educacional — para transformar práticas escolares e políticas públicas. A atuação da UNESCO nessa área é um exemplo concreto de como a cooperação internacional pode gerar impactos locais profundos. Ao integrar ciência e educação, essas iniciativas ajudam a construir sistemas educacionais mais justos, inclusivos e preparados para os desafios do século XXI.

A educação na primeira infância é uma das estratégias mais eficazes para promover equidade social e romper ciclos intergeracionais de pobreza.  

Qual é o papel essencial da educação na primeira infância na redução das desigualdades de oportunidades para as crianças? 

RO: A educação na primeira infância é uma das estratégias mais eficazes para promover equidade social e romper ciclos intergeracionais de pobreza. A UNESCO reconhece que os primeiros anos de vida são decisivos para o desenvolvimento cognitivo, emocional, físico e social das crianças, e que os investimentos nessa etapa têm efeitos duradouros ao longo de toda a vida. Ao garantir que todas as crianças tenham acesso a uma educação infantil de qualidade, estamos não apenas fortalecendo suas capacidades de aprendizagem, mas também promovendo saúde, nutrição, segurança e vínculos familiares mais sólidos. A leitura desde os primeiros anos, por exemplo, estimula o desenvolvimento da linguagem, da imaginação e da capacidade de expressão — competências fundamentais para o sucesso escolar futuro. A UNESCO defende uma abordagem integrada e intersetorial, que envolva escolas, famílias, comunidades e políticas públicas. Projetos voltados à primeira infância devem considerar as múltiplas dimensões do desenvolvimento infantil e atuar de forma coordenada para garantir que nenhuma criança fique para trás. A escola, nesse contexto, deve ser muito mais do que um espaço de instrução — deve ser um lugar de cuidado, escuta e desenvolvimento humano. Quando bem estruturada e articulada com políticas públicas eficazes, a educação infantil contribui decisivamente para reduzir desigualdades e garantir que todas as crianças tenham um ponto de partida justo em sua trajetória educacional e de vida.

O que falta para que o combate ao analfabetismo se torne uma prioridade nacional? Por que mudar esse cenário é crucial?

RO: O analfabetismo funcional, que afeta cerca de três em cada dez brasileiros, segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), é um dos desafios mais graves e persistentes da educação no Brasil. A UNESCO alerta que esse fenômeno não se limita à ausência de escolarização, mas à presença de uma exclusão intraescolar, em que estudantes frequentam a escola, avançam nas séries, mas não desenvolvem habilidades básicas de leitura, escrita e raciocínio lógico. Esse quadro é resultado direto da falta de qualidade educacional, especialmente nos primeiros anos de escolarização, e está profundamente ligado à ausência de políticas eficazes na educação infantil e na alfabetização na idade certa. Muitas vezes, a criança está matriculada, mas não é devidamente estimulada, não recebe apoio pedagógico adequado e não aprende. Isso compromete sua trajetória escolar e perpetua desigualdades sociais. A UNESCO tem reforçado que a alfabetização é a base para o exercício da cidadania, para a inclusão produtiva e para o desenvolvimento sustentável. Mudar esse cenário é urgente e possível — mas exige compromisso político, mobilização social e investimento contínuo. O combate ao analfabetismo funcional não é apenas uma questão educacional. É uma questão de justiça social.

O futuro da educação brasileira exige um compromisso profundo com a transformação estrutural do sistema educacional, e isso passa por reimaginar o papel da educação na sociedade.

Qual deveria ser o principal foco de investimentos ao se pensar no futuro da educação brasileira? E como manter, em paralelo, a atenção a temas emergentes, como a crise climática? 

 

RO: O futuro da educação brasileira exige um compromisso profundo com a transformação estrutural do sistema educacional, e isso passa por reimaginar o papel da educação na sociedade. A UNESCO, por meio da publicação “Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação”, propõe justamente essa reflexão: a necessidade de um novo pacto coletivo, baseado em solidariedade, equidade, justiça social e sustentabilidade. Esse novo contrato social para a educação não é responsabilidade exclusiva de governos ou instituições educacionais. Ele requer o engajamento de toda a sociedade: famílias, comunidades, setor privado, juventudes, movimentos sociais e organismos internacionais. No caso do Brasil, onde ainda não se alcançou uma educação de qualidade para todos, esse pacto é ainda mais urgente. O principal foco de investimento deve ser a garantia de uma educação pública, inclusiva, equitativa e de qualidade, com atenção especial à formação de professores, à valorização da carreira docente, à infraestrutura escolar e à promoção de currículos que desenvolvam competências para o século XXI, como pensamento crítico, empatia, colaboração e cidadania global. Ao mesmo tempo, é essencial que a escola esteja conectada aos grandes desafios contemporâneos, como a crise climática, a transição digital e as desigualdades sociais. A educação deve preparar os estudantes não apenas para o mercado de trabalho, mas para compreender e transformar o mundo. A escola do futuro é aquela que forma cidadãos conscientes, capazes de aprender ao longo da vida, de respeitar o outro, de cuidar do planeta e de contribuir para sociedades mais justas. Como destaca a UNESCO, educar é muito mais do que transmitir conteúdos: é formar sujeitos que saibam ser, conviver, fazer e transformar.

A escola do futuro é aquela que forma cidadãos conscientes, capazes de aprender ao longo da vida, de respeitar o outro, de cuidar do planeta e de contribuir para sociedades mais justas.

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