Elisa Martins
Jornalista, especial para a Yvirá
“É imprescindível acabar com os mitos de iniciar a alfabetização com a ‘escrita’ do próprio nome, pois quem não se alfabetizou primeiro para a leitura é incapaz de escrever. Isso não é escrita, é desenho.”
É por volta do final dos 6 anos ou início dos 7 anos que a maioria das crianças possui maturidade cognitiva, perceptual e emocional para iniciar a aprendizagem da leitura.
“Dois casos de destaque de aplicação desse modelo foram em Lagarto, no Sergipe, e em São José da Laje, em Alagoas. Eram os estados com pior desempenho na Avaliação Nacional de Alfabetização”
“Os alfabetizadores não estão preparados, e o material pedagógico é péssimo. O alfabetizando não é educado como um todo, em pontos como cognição, percepção, sensório-motricidade, afetos, socialização, estética.”
Elisa Martins
Jornalista, especial para a Yvirá
JULHO/AGOSTO 2025 | nº 2 | Linguista Leonor Scliar-Cabral critica preparação de alfabetizadores e qualidade de material pedagógico e defende projeto nacional construído com base nos avanços da Linguística e da Neurociência
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
As sequências de resultados preocupantes revelados em estudos de avaliação de aprendizado e monitoramento das políticas educacionais para a alfabetização no Brasil nos últimos anos acenderam um alerta e impulsionaram a linguista Leonor Scliar-Cabral a dedicar sua trajetória profissional ao combate do analfabetismo funcional no país. Mais que isso, levaram-na a desenvolver um método próprio, o Sistema Scliar de Alfabetização, baseado em neurociência e em sua experiência nos estudos de aquisição de linguagem.
Em conversa com YVIRÁ, a professora emérita da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) afirma que as causas para o mau desempenho começam, principalmente, na aprendizagem inicial precária da leitura e na alfabetização sem bases científicas. Confira na entrevista a seguir.
Em maio foi divulgada uma nova pesquisa do Inaf, o Indicador de Alfabetismo Funcional, que mostrou que 29% dos brasileiros são analfabetos funcionais. A taxa se manteve a mesma desde o último estudo de 2018. Como sair dessa situação dramática?
LEONOR SCLIAR-CABRAL: Os dados revelam que a situação do analfabetismo funcional continua grave no Brasil, porque não foram tomadas as medidas em profundidade para erradicá-lo. Em 1º lugar, seria essencial reformular os fundamentos e a metodologia dos alfabetizadores do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos. É imprescindível acabar com os mitos de iniciar a alfabetização com a “escrita” do próprio nome, pois quem não se alfabetizou primeiro para a leitura é incapaz de escrever. Isso não é escrita, é desenho. Outro mito é alfabetizar nomeando as letras, o que só atrapalha. Nós não lemos a palavra escrita “Vivi” como “veivei”. É necessário aplicar os avanços das ciências como a linguística, a psicolinguística, a neurociência da leitura, a neuropsicologia e a sociolinguística aos fundamentos e à metodologia dos alfabetizadores.
Que exemplos poderia citar de boas práticas para reverter os altos índices de analfabetismo?
LSC: O mais exitoso que encontrei foi o programa Iniciativa de Intervenção Precoce de Dunbartonshire, na Escócia, que em dez anos erradicou o analfabetismo funcional no condado de situação mais grave no Reino Unido. No início do programa, em 1997, somente 5% das crianças que frequentavam a primeira série da escola primária, o nosso Ensino Fundamental no Brasil, conseguiam escores altos em leitura. Em 2005, quando as crianças do programa começaram a ingressar na escola secundária, o índice de analfabetismo funcional caiu para 6%. O programa aplicou o método fônico sintético e o enfoque multissensorial de Montessori, com material pedagógico elaborado a partir de pesquisas, professores especialmente treinados, avaliação e monitoria contínuas, além de tempo extra para a leitura no currículo, assessoria às famílias e de quem cuida das crianças e a implementação de um entorno de letramento na comunidade.
Existe faixa etária ou turma ideal para que os alunos comecem a ser alfabetizados? Por que as crianças são apresentadas cada vez mais cedo ao alfabeto e à leitura e escrita nas escolas?
LSR: A razão de apresentarem o alfabeto a crianças, mesmo na Educação Infantil, é para a escola “mostrar serviço”. Não existe prova experimental que apoie tal orientação. É por volta do final dos 6 anos ou início dos 7 anos que a maioria das crianças possui maturidade cognitiva, perceptual e emocional para iniciar a aprendizagem da leitura.
O que a levou a criar o Sistema Scliar de Alfabetização e no que ele consiste?
LSC: A metodologia do experimento na Escócia foi uma inspiração e, em 2012, criei o Sistema Scliar de Alfabetização, com a colaboração da equipe do projeto Ler & Ser – combatendo o analfabetismo funcional. A grande motivação decorreu de que, em primeiro lugar, apesar dos esforços dos educadores, o índice de analfabetismo funcional era muito alto e, infelizmente, continuou. A metodologia consiste na formação continuada dos educadores do primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental, em cursos semanais, com material pedagógico fundamentado nos avanços científicos.
Os educadores usam os livros de fundamentos de alfabetização para a leitura e escrita do Método Scliar-Cabral de alfabetização, além dos roteiros e anexos com as instruções para aplicar os planos de aula para o primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental, do mesmo método. Já as crianças usam os livros “Aventuras de Vivi” e “Aventuras de Vivi no Mundo da Escrita”, o “Caderno de Atividades: Módulo 1, Leitura” e “Módulo 2, Escrita”, também do mesmo método.
Dois casos de destaque de aplicação desse modelo foram em Lagarto, no Sergipe, e em São José da Laje, em Alagoas. Eram os estados com pior desempenho na Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) de 2016. Os índices satisfatórios na competência leitora e de escrita foram alcançados graças à formação continuada dos professores, ao apoio estratégico das Secretarias Municipais de Educação, que disponibilizaram os recursos, inclusive para aquisição do material pedagógico, à colaboração dos familiares e ao aval das comunidades, dos poderes Legislativo e Judiciário municipais.
Como o Sistema Scliar de Alfabetização aplica a neurociência e sua experiência como linguista na tentativa de melhorar os indicadores de alfabetização?
LSC: Sabemos que a aquisição do sistema oral se dá de forma natural e espontânea nas crianças que não apresentem distúrbios sensório-motrizes, perceptuais ou cognitivos maiores. As primeiras palavras ocorrem por volta de um ano de idade. O sistema escrito é aprendido no contexto do ensino-aprendizagem de forma sistemática, intensiva, quando a criança já atingiu certa maturidade cognitiva, linguística e emocional.
Enquanto a comunicação oral é questão de sobrevivência do homem, desde que iniciou o processo de humanização, a escrita, distinta da pintura, do desenho ou de outros meios de memorização, apareceu muito recentemente, aproximadamente 5.000 anos a.C. Houve adaptações gradativas, desde os sistemas logográficos, até os fonográficos, silábicos e alfabéticos. Esses últimos, os que mais se aproximam da arquitetura de como está estruturada e funciona a linguagem verbal oral, contudo, apresentam tremendas dificuldades à aprendizagem, ou seja, à alfabetização.
Para se entender a natureza dessas dificuldades, é preciso explicar o conceito de nível na linguística. A arquitetura das línguas e de seu funcionamento começa no nível mais baixo, com um número muito pequeno de traços fonéticos distintivos, que se integram para, no nível seguinte, formar um número muito pequeno de fonemas em cada língua. Todos os níveis mais baixos, com poucos elementos e fechados, têm que ser automatizados para liberar a mente para os processos criativos, que vêm depois, já com textos. Esse princípio derruba os argumentos dos que condenam os métodos fônicos sob a falsa alegação de que eles obrigam a criança a repetir sons sem sentido.
Há uma espécie de “guerra ideológica” sobre métodos de alfabetização travada nos últimos anos no país. De que forma ela afeta o ensino nas salas de aula e o combate ao analfabetismo funcional no Brasil?
LSC: Existe, sim, uma guerra ideológica, mas, mais que tudo, interesses econômicos de não perder cargos, e interesses de editoras de manterem o monopólio para indicar a adoção do material pedagógico.
Na sua opinião, quais são os fatores que mais impactam para um melhor aprendizado da leitura e da escrita no país? Onde está o maior gargalo do Brasil neste assunto?
LSC: Os fatores que mais impactam provêm da ausência de uma política pública que se apoie nos avanços da Linguística, da Psicolinguística, da Neurociência da Leitura, da Neuropsicologia e da Sociolinguística, para os fundamentos e a metodologia da alfabetização. Os alfabetizadores não estão preparados, e o material pedagógico é péssimo. O alfabetizando não é educado como um todo, em pontos como cognição, percepção, sensório-motricidade, afetos, socialização, estética.
Qual é a importância dos sistemas de avaliação da educação, como o Saeb, na verificação de aprendizado e no monitoramento das políticas educacionais? E o que esperar das ações mais urgentes para reverter esse quadro de analfabetismo funcional?
LSC: O sistema de avaliação Saeb é muito importante e foi utilizado em meus experimentos. As avaliações devem ser feitas regularmente e de múltiplas formas. Espero que o governo altere com maior urgência sua política pública de alfabetização.