Yvirá Cátedra UNESCO de Educação e Diversidade Cultural UNESCO
SETEMBRO/OUTUBRO 2025 | nº3
O que virá? REPORTAGEM

Situações de indisciplina e desrespeito desafiam cada vez mais os educadores

Elisa Martins
Jornalista, especial para Yvirá
Giselle Soares
Jornalista, Rede CpE

Muitas vezes, a pausa nos conteúdos tradicionais para reequilibrar a sala de aula ou a escola vale a pena.
Ao enxergar a indisciplina como uma forma de comunicação das crianças, podemos transformar desafios cotidianos em oportunidades de aprendizado.
Os limites são fundamentais, mas só fazem sentido quando têm propósito claro e nascem do respeito mútuo.

Muitas vezes precisamos parar, discutir, voltar várias vezes ao mesmo tema, mostrar que existe diálogo. Não é só dar advertência, suspender e parar aí.

Elisa Martins
Jornalista, especial para Yvirá
Giselle Soares
Jornalista, Rede CpE

SETEMBRO/OUTUBRO 2025 | n°3 |YVIRÁ reúne experiências que podem ajudar a contornar o comprometimento do fluxo da aula, do aprendizado e do bem-estar no ambiente escolar

O uso de celulares em sala de aula, apesar da proibição por lei no Brasil,  é uma entre várias manifestações de indisciplina que desafiam cada vez mais os educadores. Interrupções, conversas paralelas e agressividade também foram potencializadas em uma geração muito conectada e dispersiva. Embora não exista solução única para lidar com esses comportamentos, compartilhar experiências pode servir de base para boas práticas. YVIRÁ reuniu algumas delas.

Muitas vezes, a pausa nos conteúdos tradicionais para reequilibrar a sala de aula ou a escola vale a pena.

“Os alunos precisam saber o que se espera deles e as consequências de suas ações. Idealmente, essas regras devem ser construídas participativamente, com a colaboração dos próprios estudantes, aumentando o senso de pertencimento e responsabilidade”, diz Sheila Garbulha Tunuchi de Campos, professora de projetos educacionais (Fluência Leitora, Práticas Corporais e Socioemocional) da rede municipal de Porto Feliz, no estado de São Paulo.

Criar um vínculo positivo entre professor e aluno, afirma ela, é a base para qualquer mediação. Educadores empáticos, que praticam a escuta ativa e demonstram preocupação genuína com o desenvolvimento dos alunos, inspiram mais respeito e colaboração: “Valorizar o esforço dos estudantes, mesmo em pequenas conquistas, também fortalece esse vínculo e promove um ambiente mais positivo”.

Práticas de atividades socioemocionais se mostram ferramentas poderosas. A educadora cita o projeto “Resgate Socioemocional”, implementado em uma escola pública municipal de Porto Feliz, que surgiu a partir da observação de comportamentos em crianças de 6 a 8 anos, que eram bebês na época da pandemia.

“As atividades incluíram círculos de diálogo e escuta ativa, que dedicavam tempo semanalmente para os alunos expressarem sentimentos e opiniões em um ambiente seguro, com foco na empatia. Por meio de jogos cooperativos, promovemos a colaboração e o trabalho em equipe, fortalecendo laços e ensinando a respeitar diferenças”, conta Sheila.

“Também foi criado um Código de Convivência, feito pelos próprios alunos, que definiu coletivamente valores e comportamentos, fortalecendo a responsabilidade e a autonomia. Aulas de mindfulness e relaxamento ajudaram a gerenciar o estresse, a ansiedade e a aumentar a concentração. Por fim, o chamado ‘correio da gratidão’ foi um espaço para mensagens anônimas de agradecimento, promovendo a valorização das relações e o respeito mútuo”, conta a professora. “Muitas vezes, essa pausa nos conteúdos tradicionais para reequilibrar a sala de aula ou a escola vale a pena”.

Corpo e fala

Atenção ao entorno faz diferença. Afinal, é no mesmo espaço movimentado em que os alunos interagem com colegas, trocam experiências, exploram a criatividade e convivem com as diferenças, que surgem questões de relacionamento e comportamento, lembra Karinne Rodrigues, professora alfabetizadora da rede pública municipal em Ouro Branco, Minas Gerais.

A escola em que trabalha aposta em atividades que articulam respeito, escuta e conhecimento prévio dos alunos e do capital cultural de cada um deles. Karinne menciona a “Assembleia de Classe”, ferramenta dirigida principalmente aos alunos do 1º ano do Ensino Fundamental, com idades entre 6 e 7 anos. 

“É uma proposta de trabalho pedagógico que dá oportunidade aos alunos de compartilharem com o grupo percepções sobre regras de convivência e relações interpessoais e, em coletivo, discutirem possíveis soluções para determinados acontecimentos”, conta.

Desde o início do ano letivo, os alunos definem em conjunto quais regras de convivência são essenciais para um ambiente respeitoso e produtivo. 

“É uma atividade que contribui para a (des)construção do termo indisciplina, para uma nomeação mais adequada do que o corpo e a fala dizem naquele momento em que a criança não está legal”, diz a professora.

“Ao enxergar a indisciplina como uma forma de comunicação das crianças, um pedido de atenção, um desconforto não verbalizado ou mesmo uma busca por pertencimento, podemos transformar desafios cotidianos em oportunidades de aprendizado”, afirma Karinne.

Ao enxergar a indisciplina como uma forma de comunicação das crianças, podemos transformar desafios cotidianos em oportunidades de aprendizado.

Gesto de esperança

Falar sobre indisciplina e desrespeito em sala de aula é também reconhecer a complexidade das relações tecidas no cotidiano escolar. Para Gabriela Arruda, coordenadora pedagógica da educação infantil em uma escola da rede privada de São Paulo, a prática ensinou que a autoridade que transforma não é a que impõe, mas a que se constrói na relação com os alunos.

“Em vez de controlar o corpo da criança, é preciso se perguntar: o que esse corpo quer dizer? Que tipo de ambiente estamos oferecendo para que ela possa existir com dignidade, movimento e voz? Precisamos olhar a sala de aula como espaço de libertação, onde o afeto é uma prática política. Uma criança que se joga no chão, interrompe e não ‘respeita’ a roda talvez esteja tentando sobreviver num espaço que não a escuta. Por isso, antes de rotular, eu observo”, conta.

Os limites são fundamentais, mas só fazem sentido quando têm propósito claro e nascem do respeito mútuo.

Há alguns anos, lembra, uma criança que gritava frequentemente e empurrava os colegas acabou mostrando que a sala precisava de mais espaço para o movimento. Foi feita uma reorganização que incluiu um tapete para rolar, blocos para empilhar e uma rampa. A criança passou a correr menos, diz Gabriela, porque não precisava mais fugir.

“Não há manual, mas uma bússola: o olhar científico e humilde. Isso não quer dizer ausência de limites. Os limites são fundamentais, mas só fazem sentido quando têm propósito claro e nascem do respeito mútuo”, afirma ela.

Algumas das ações incluem acordos construídos em grupo, rodas de conversa sinceras, espaço para nomear os sentimentos e dar tempo ao tempo.

“Uma vez, em uma turma mais velha, criamos um mural com a pergunta: ‘Como queremos nos sentir aqui dentro?’ As respostas foram tocantes: seguros, livres, felizes, escutados. A partir dali cada situação de conflito era revisitada à luz desses desejos coletivos”, lembra Gabriela.

Claro que há dias difíceis, quando a tensão sobe, o cansaço pesa ou o aluno repete gestos agressivos, apesar de todos os cuidados.

“Nesses momentos, respiro. E lembro que nenhum gesto meu deve ser maior do que o que desejo ensinar. Se quero que aprendam respeito, preciso respeitar. Se quero que se autorregulem, preciso me autorregular”, conta. “Não é fácil, mas não é impossível. Sigo aprendendo com cada criança, com cada desafio e, sobretudo, com a certeza de que educar é um gesto radical de esperança”.

Muitas vezes precisamos parar, discutir, voltar várias vezes ao mesmo tema, mostrar que existe diálogo. Não é só dar advertência, suspender e parar aí.

Momentos de reflexão

Se lidar com a indisciplina é inevitável, provocar os estudantes a pensarem sobre ela é uma boa aposta. “Os comportamentos estão mais complexos, e isso não se deve a uma crise generalizada de falta de educação. Vivemos o desafio de uma geração de estudantes colocada diante de muitos estímulos visuais e formas de aprendizagem, enquanto há também uma descrença no papel formador da escola”, diz Daniel Bahiense, professor e coordenador pedagógico do Ensino Médio na rede privada de ensino do Rio de Janeiro.

“Investir tempo em conversas individuais e coletivas gera grandes possibilidades de transformação. Quanto mais velhos os estudantes, mais apostamos nisso”, afirma. 

No caso do Ensino Médio, diz, a escola leva os alunos a reflexões sobre ética junto aos professores e sobre como ações individuais impactam também outras pessoas.

“Não dá para ter uma situação em que um professor quer dar aula e os alunos não param de falar, e outro aluno que não está conversando achar que isso não diz respeito a ele. Precisamos nos sensibilizar e nos incomodar mais, criticamente”, afirma Daniel.

Quando surgem situações do tipo, conta, são feitas conversas individuais, e coletivas também, com turmas inteiras mergulhadas em assembleias e debates sobre temas que precisam ser entendidos como desafios comuns.

“Às vezes, fracassamos. A educação tem isso, não é um manual. Muitas vezes precisamos parar, discutir, voltar várias vezes ao mesmo tema, mostrar que existe diálogo. Não é só dar advertência, suspender e parar aí”, diz.

O desafio vai além dos professores e da escola: “A escola precisa conversar com o que há de mais contemporâneo no campo da educação e da pedagogia. Mas é necessária também uma repactuação coletiva sobre o papel dessa escola, que é, ainda, muito importante na construção ética e cidadã de relações respeitosas. O que acontece na escola é um problema de todos”.

Leia +